CD 4



Série “Boemia - Crônica Ensaiada de Uma Cidade” - (Eduardo Marques)

Letras do CD 4


1 - O Sonho (Eduardo Marques) - Ô mãe, eu tive um sonho essa noite / Foi um pesadelo desses / Que a gente até tem pena de acordar / É que o morro havia se acabado / E tudo estava transformado / Num palácio aonde a gente ia morar / Seria o Palácio da Alvorada? A Granja do Torto? Ou a Casa de Dinda? / Eu não sei se eu era o presidente / Ou algum famoso artista / Eu só sei que dava gosto de se ver / Tinha guarda-costas, motorista / E na capa da revista o meu retrato com você / Ô mãe, ô mãe, ô mãe eu tive um sonho essa noite... (BIS) // Mas francamente, se não fosse o tiroteio lá no beco / Eu confesso que dormia a vida inteira / Justamente quando eu recebia / Um convite para ir a um banquete em Brasília / Eu não tinha medo de avião / E te deixei o meu talão de cheques / Pra qualquer despesa / Se não fosse aquela escopeta / E o diabo do capeta me fazendo despertar / Só sei que uma multidão / ‘Tava querendo me agarrar / Se eu não acordo primeiro / O beijoqueiro me pegava / Vê se não bota o urinol / Mais debaixo da minha cama / Pra quando eu cair no chão / Não molhar mais a minha cara...

2 - Óculos Escuros (Eduardo Marques) - Fala, você só murmurava, fala, fala, fala / Eu tentava, eu juro, eu tentava, mas a voz sufocava / Ai, eu até que sabia, que do forno viria uma carne assada / Que sua mãe não servia / Esperando por minhas benditas palavras / Seu pai olhando pra mim / Como quem olha um réu a caminho da forca / E a família, na sala, esperando pra ouvir / O que ia sair de minha boca / Era um fel bem na língua / Um punhal na garganta / Que me estrangulava / Pedi mais um copo d’água / E a boca queimava / E a sede era tanta / Deixei caírem os óculos, me abaixei pra pegar, quase pisei / Mas tropecei no tapete e bati com a cara no meio do bar / Ai, desejei engolir a pedra de gelo que sua mãe deu / Esganar as irmãs solteironas que me perguntavam / Doeu? Doeu? Doeu? / Ai, foi um rebuliço, que depois disso / Ninguém almoçou / Ai, o galo cresceu e seu pai perguntou / Será que ele bebeu? / Hoje, olhando pro meu anular / Sem aliança, no meio de um bar / Vejo a lembrança no copo morrer / Como afundou todo o nosso gostar / Eu, expert em pedidos de mão / Você vivendo em outro lugar / Deixei a nossa aliança e tudo / Sobre os veludos de algum bilhar / Você vivendo num outro país / Eu segurando sobre o meu nariz / Os mesmos óculos escuros / Pra dissimular...

3 - Pelo Cano (Eduardo Marques) - Embrulhou uns discos, uns livros, um par de chinelos / A chave inglesa, o martelo, o alicate e o desentupidor / Deixou um bilhete dizendo que a casa dela / Não era oficina e que eu era / Um tempo perdido que passou / Passou, passou algum tempo, comprei uma rosa pra ela / Deixei um bilhete dizendo pra ela / Que a vida sem ela não tinha mais sabor / Mandei junto com uma caixa de bombom / Ela comeu tudo, nem me agradeceu / E eu acho que a rosa já morreu / Morreu, morreu a minha esperança quando eu recebi / No mesmo papel em que eu lhe escrevi / Um bilhete dela me cobrando um aluguel / Pela quinzena que eu dormi ali / Que a casa dela não era hotel / E que eu era um sem jeito que nem conseguiu / Desentupir o cano da pia que ela mesma entupiu / O cano da pia que ela mesma entupiu...

4 - Praga (Eduardo Marques) - Rezei, botei teu nome e um vela acesa / Um copo d’água pro anjo de guarda / Pra ver se iluminava os caminhos / Reguei os teus pertences todos com incenso / Joguei sal grosso no apartamento / Pra ver se abria os nossos destinos / Queimei com ervas teu retrato, as lembranças / E defumei as roupas com cachaça / Pra ver se embriagava os meus sentidos / Jurei aos pés da imagem que não voltaria / Ralei joelhos na escadaria / Da Igreja lá da Penha e fiz romaria / Cravei teu nome escrito em cada encruzilhada / E me joguei ao mar em sete ondas / Pra ver se me livrava desse desespero / Caí na asneira de entrar na onda errada / Bebi três litros de água salgada / E ainda continuas do meu lado, ô praga / E ainda continuas do meu lado, ô praga / E ainda continuas do meu lado, ô praga...

5 - Quarto e Sala Na Barra (Eduardo Marques) - Troquei meu quitinete lá do Centro por um quarto e sala / Na Barra, na Barra, na Barra, na Barra / Meu Deus! Se eu soubesse que era assim / Há mais tempo eu trocava, trocava, trocava, trocava / Agora o meu cartão de apresentação / Funciona, funciona, funciona / A dona que eu vivia paquerando / Agora telefona: “Oi, amor...” / Liguei o rádio às altas madrugadas, ninguém reclamou / Tirei a roupa em plena portaria / E o Vigia me cumprimentou; / - “Saúde, Doutor! Já cedinho e o senhor está de Cooper feito!” / E o vizinho elogiou os meus músculos do peito / Na praia já aprendi a pegar surf e com aquela cor / Vou desfilar na gafieira com a filha do zelador, ô,ô / E vou mandar envenenar no meu fusquinha o carburador / Agora sim, eu vou mandar fazer pra mim um terno de cetim / Já não frequento botequim / Agora então vou acabar com a prestação / Não vou juntar mais um tostão / Eu vou comprar só de cartão / Embora esteja residindo lá num condomínio interditado / Não estou preocupado / Daqui a pouco recebo a escritura de usucapião / Me chama pra outra invasão...

6 - Que Cara de Pau (Eduardo Marques) - Mas que cara de pau / Foi chegando, entrando / Comeu e bebeu, que passou mal / Soltou piadinha / Ficou de gracinha / pra cima do meu material / Pegou a bandeja, acabou com a cerveja / Fumou meu cigarro / Votou no homem e fez a cabeça de todo o pessoal / Perguntou o nome / Trocou telefone com a minha sobrinha / Marcou com a vizinha, domingo que vem, um fundo de quintal / Foi lá na cozinha, abriu a geladeira e acabou com a galinha / Da segunda -feira e só deixou farinha pro nosso jantar / Bateu uma lombeira, esticou na cadeira, botou os pés no meu divã / E quando acordou, chegou à cozinha e pediu o café da manhã / Ligou interurbano, falou com a família mais de meia hora / Ligou pra Brasília, Manaus, pra Bahia e Juiz de Fora / Mas que cara de pau, já tem mais de um mês que não foi embora / Botou pra correr o meu filho e agora está com a minha nora / Foi ao meu trabalho e meteu um vale em cima do meu patrão / Dizendo que eu não ia trabalhar, porque estava doidão / Fez um rebuliço, ligou pra polícia, pro hospício, e eu fui de camburão / O doutor falou, arriscou um palpite que talvez pro mês eu fique bom / A minha mulher já pediu o desquite / Minha filha falou que ele é um pão / Meu advogado pediu um aumento, dizendo que é culpa da inflação / Fez um testamento pra que eu assinasse só por precaução / E abriu um escritório e de sociedade botou esse cão...  

7 - Sala de Espera (Eduardo Marques) -  Suspiro e olho nos seus olhos cor de ervilha / E uma folha na virilha / Quase me deixou sem fala na sala / E a bela, quando fala, pronuncia / Denuncia, insinua, toda sua nua geografia / A fera desafia quando olha / Ela desfolha a revista como quem só vê figura / Desfigura as pupilas dos meus olhos / E a menina dos meus olhos /  Não vê que  me sevicia / Assim, ainda vazo das retinas / E detenho essa menina / Com seus olhos em meus olhos de rapina / Pena que ela seja assim tão comodista / Não desista da revista e penetre em minha vista / Por mais que eu invista / Se compenetrada nas notícias / Sentencia penitências / Penetrando os dedos na saliva / Vira a página e a minha cabeça / E esse médico não chega pra matar o meu suplício...

8 -  Salões da Vida (Eduardo Marques)  -  A tua saia rodada já não diz mais nada / Tuas sandálias ficaram encardidas / Ao invés dos balangandãs e das bijuterias /  Hoje ostentas o brilho das lojas das galerias / E já não dizem teus pés / Nos passos da avenida / Hoje atravessam  salões da vida /  Já tens sotaque inglês / Bebendo vinho francês / E vives num avião pra baixo e pra cima / Trocaste as batucadas / Deixando a Escola e as alegorias / Numa turnê pelo mundo com soberania / Levas debaixo do braço, ao invés de estandarte, um marido estrangeiro / Que fez turismo no Rio de Janeiro / Que fez turismo no Rio de Janeiro / A tua saia...

9 -  Samba Enredo (Eduardo Marques)  -  O meu samba enredo foi assim / A porta bandeira fez de mim / Estandarte sem valor / Pisou no meu coração como se fosse avenida /  Desfilou descolorida, sem nenhuma evolução / Me deixou na arquibancada / Olhando a passarela silenciosa e vazia / Calou a bateria, rasgou a fantasia, que eu encomendei pra ela / Pegou um avião / Foi desfilar no Japão / Com um turista europeu / Que azar o meu /  Deixou um bebê de olhos verdes, lourinho / Lá no barracão das costureiras / E um bilhete cheio de carinho / Dizendo que o pai do menino era eu...

10 -  São Paulo Não Tem Mesmo Nada Com Isso  (Eduardo Marques) -  Saltei na rodoviária e pedi um pastel /  Andei pra cima e pra baixo procurando um hotel / Caí na asneira de perguntar a um policial /  Mas só fui obter a informação correta / Quando me dirigi a uma banca de jornal /  Entrei, achando que era também  só mais um bordel / Paguei adiantado um colchão que era de aluguel / Também São Paulo não tem mesmo nada com isso /  Quem manda eu sair lá da terra natal /  Pra vir tentar a sorte na maior cara de pau /  Caí, ai caí nas tuas madrugadas como um marginal /  Trepei, ai como eu trepei, todas tuas esquinas como se monta um corcel / Varei o teu frio e bebi toda tua garoa / E só fui acordar no dia seguinte / Sentindo uma baita dor e olhando pro teu céu /  O doutor falou que o meu pulmão estava todo cinza como o céu /  Um trombadinha levou minha camisa o meu chapéu / O homem da Rota focou com o meu papel /  Custou uma grana, mas botei um advogado / Que me disse que já está tudo arranjado / E que pro fim do mês estou de fora do quartel /  Também São Paulo não tem mesmo nada com isso /  Mas pra que que eu fui comer esse pastel / Que fez um rebuliço nos meus intestinos / Chamei outra vez o homem da guarda e pedi mais papel / Mais um balde d’água e foi com o Estadão que limpei / Minh’alma estampada na cultura nacional /  Também São Paulo não tem mesmo nada com isso / Lá pro fim do mês eu ‘tô dando um sumiço /  Não quero saber mais de viver na capital /  Mandei, já mandei, já mandei uma carta pro meu pai, pedindo um dinheiro /  O que eu tinha já dei todo pro carcereiro / Poder trazer mais jornal / Saltei na rodoviária e pedi um pastel... 

11 - Seis da Manhã (Eduardo Marques) - Queria sair, pra te descobrir, talvez algum  bar /  Cheguei a me vestir, a me perfumar, a me produzir /  Cheguei a abrir a porta e a chamar o elevador,  aí desisti /  A me confundir, preciso ir dormir / Voltei a fumar / Liguei a TV, mas não consegui ouvir o jornal /  Tentei distrair, bebi um licor, até esvaziar /  Daí resolvi te telefonar, ninguém atendeu, cansei de esperar /  O despertador vai me sacudir, não vou levantar / Preciso sair pra ir trabalhar, que cara que eu vi ao me pentear / Pareço um zumbi, são seis da manhã, não fui trabalhar..

12 - ‘Stablecimento Comerciale (Eduardo Marques) - Estava ficando anormal, com uma fome daquelas / Entrei lá no Portugal / Couvert foi só de moelas / Depois um rango bem preparado e pra desgastar / Acendi logo um cigarro e fui me recostar / E eis que então de repente, ó xente! / Saiu de baixo da mesa / Surgiu bem na minha frente / Um aborto da Natureza / Me abaixei pra examinar, não é que o troço mexeu / Me afastei pra não pegar, o tal embrulho gemeu /  Olhei pra um lado e pro outro / Como não vinha ninguém / Tratei de desembrulhar / Lá dentro tinha um neném / Olhou pra mim, disse; “moço eu vim de outro planeta /, ‘tô com uma sede do cão, me paga uma cerveja” / Tentei dizer-lhe que aqui é proibido a menor /  Beber em um botequim, já molhadinho de suor /  Nisso o pacote cresceu /  De neném virou dragão / Esperneou feito um trem / Explodiu que nem vulcão / Xingou minha mãe, me atraquei /  Tentei correr, nas cadê? / Só sei que quando acordei / Estava caído no chão / Com febre a quarenta graus, chamando pelo Raul / Em volta uma multidão / De raiva, azul, “Seu Cabral” /  Gritando: “Ó gajo! Que susto! Bateste quase um tonel de vinho /E três pratos fundos de mocotó especial /  Mas por favoire, pague a conta e vá dormir num hotel / Que isto a cá é um ‘stablecimento comercial” / Meu analista achou normal... 

13 - Timidez (Eduardo Marques) - Quando eu dei por mim te desejava / E assim de rabo de olho te segui todo o salão / Quis disfarçar, esconder meu receio / Apaguei um cigarro ainda no meio / E acendi um cigarro ao contrário / E traguei, e tossi, como eu nunca tossi / Quando eu dei por mim, passei da conta / Misturei whisky e gim, ai de mim, que já não sei /  E  fui  pedir outra dose ao garçom, com o copo ainda cheio /  Deixei cair o outro copo no chão, sem querer /  Fui ajudar a catar cada caco e acabei com um corte na mão / Quando eu dei por mim, tudo rodava / E o suor me encharcava o colarinho  do  smoking que eu aluguei /  Quis afrouxar os cordões dos sapatos / Te perguntar qual o teu telefone / Mesmo sem nem saber qual o teu nome, mas é que a minha timidez... /  Quando eu dei por mim, já capotei / Tropecei no pé de alguém que saiu de onde eu não sei /  Quis consertar, levantei-me e sorri /  Não me atrevi a te olhar outra vez /  Me  desculpei, fiz menção de sair, mas fiquei por ali a me considerar /  Quando eu dei por mim, amanheceu, coisa ruim / E aquela bolha no meu calcanhar e a dor de cabeça....

14 - Três Dias (Eduardo Marques) - Aonde você foi esses três dias que você sumiu / Não me deu notícias, ninguém sabe, ninguém viu / Choveu, depois o sol saiu / Aluguei um filme que você não viu / Escrevi mil cartas que não recebeu / Rasguei as palavras que escrevi / Aonde você foi esses três dias que você sumiu / Se pergunto às pessoas, ninguém sabe, ninguém viu / Choveu, depois o sol saiu / Comprei o tal disco que você pediu /  Cortei os cabelos, não fui trabalhar / Não lhe esperei mais pra jantar / Deitei e não adormeci / Provei seu licor até se esvaziar / Botei pra tocar o seu disco e cantei / Até o vizinho reclamar / Dancei até o sol raiar /  Já não via a chuva na janela /  Andei pelas ruas a me encharcar / Pra tirar seu cheiro do meu corpo / Pra lavar de vez meu corpo inteiro / Até me acabar...

15 - Tudo O que Não Se Esquece (Eduardo Marques) - Olha meu amor o que eu já fiz / Pensando que era feliz / Me entregando por aí / Pra qualquer quarto / Qualquer braço / E me trair de manhã cedo / E perceber que foi ruim / Que era melhor não ser assim / Ai, a solidão faz dessas coisas / Quantas noites tapeando o coração / Qualquer pessoa, depois do terceiro chope  /  Um agrado, um carinho / E é melhor que se deitar sozinho / Na imensidão do quarto / Ai, o coração tem dessas coisas / Vai armando as armadilhas /  E acaba indefeso, preso em seu próprio alçapão / Olha meu amor, quanta mentira / Quando o doa amanhece, quanta dor / Quanto desgosto / Quando a gente olha no espelho /  E vê no rosto tudo o que não se esquece / Tudo o que não se esquece...